Porque grandes garotas não choram. Elas escrevem.

Quando o medo de se ferir fere

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Meu artigo que foi publicado no jornal Diário do Vale.

Dizem que o preconceito, de qualquer espécie, é uma das mais sérias feridas que a raça humana carrega. Todos, não importa o quão belos sejam, já foram discriminados ou julgados de alguma maneira. Também penso dessa forma, mas ouso dizer que, nos dias de hoje, há um estigma mais preocupante que o preconceito: o medo de ser julgado. Concordo que temos que saber nos defender e, como alguns amigos insistem em dizer, precisamos nos impor. Mas, por mais que não pareça, é tênue a linha que separa o sentimento de autopreservação da paranóica mania de perseguição. Não sei em que momento da nossa história decidimos que todos os que estão lá fora são inimigos, ou em que ponto da nossa “evolução” enquanto sociedade nós nos acostumamos a temer qualquer aproximação que nos torne vulneráveis ao julgamento alheio. Não posso precisar quando, mas o fato é que a humanidade, individualmente, aprendeu a se fechar em uma fortaleza impenetrável de medo, orgulho e solidão. E enfeitamos essa assustadora fortaleza com frases de efeito - como “ninguém tem nada com a minha vida”, ou pior, “não preciso de ninguém”. Mascaramos nosso medo com ar de superioridade e nos fechamos tanto que acabamos por nos perder em nós mesmos, por termos lacrado todas as portas que poderiam nos levar para fora. Quando penso nessa espécie a qual pertenço, me recordo das palavras do meu tio a me explicar sobre aquelas plantinhas que minha irmã e eu, quando crianças, chamávamos de “dormideiras”. Ele dizia: “Sejam delicadas, pois, ao menor toque, elas se fecham”. Talvez ele não estivesse definindo apenas o movimento de retração natural daquela espécie de plantas. Talvez ele estivesse, de forma subliminar, nos preparando para nossas relações futuras. Hoje presenciei uma cena que jamais vou esquecer. Ao sair do trabalho, estava esperando o ônibus para a faculdade e notei a presença de uma mulher alta e elegante. Ela tentava convencer a filha de que já havia comido pipocas demais e que ficaria doente, caso continuasse a comer, e me lembrei dessa mesma discussão cotidiana em casa, quando o meu teimoso irmão, portador de Síndrome de Down, faz todo tipo de pirraça por não conseguir parar de comer pipocas. Quando a menina se virou, pensei: “que coincidência”. Pois a pequena também era portadora de Síndrome de Down e tinha exatamente o mesmo rostinho do meu pequeno. Não tinha notado até o momento, mas um rapaz também observava as duas, com um olhar curioso. Até que a elegante mulher notou o olhar do homem e se pôs a gritar, acusando-o de encarar sua filha por ela ser diferente. A mãe o chamou de preconceituoso e proferiu todo tipo de barbaridade que só alguém muito desequilibrado seria capaz de dizer. O rapaz encheu seus olhos de lágrimas e apenas ouviu. Quando a mulher se cansou de tanto gritar horrores, o pobre espectador se desculpou e explicou que, sempre que vê uma “criança especial”, se lembra da filha, que também tinha Down, mas faleceu há dois anos por complicações cardíacas. Pediu desculpas inúmeras vezes e então atravessou a rua, envergonhado e emocionado demais para continuar ali. A mulher, que, se fosse realmente um ser humano, estaria envergonhada e correria para se desculpar, pegou a filha pela mão e entrou no primeiro ônibus que parou. E eu fiquei lá me perguntando que tipo de marca uma pessoa carrega para reagir assim à simples curiosidade de um desconhecido. Eu mesma sempre analiso o comportamento de todo Down que encontro. Quando tenho abertura, até tento conversar com quem estiver com a criança para trocar experiências e, quem sabe, ajudar no desenvolvimento do meu irmãozinho. Mas nunca havia presenciado uma reação dessas. Nós temos tanto medo de sermos atingidos em nossas fraquezas – ainda que em pensamento – que nos defendemos antes mesmo de sermos atacados, e não paramos para nos perguntar se o ataque realmente viria. Quem, naquele lugar, poderia mensurar a dor que aquele homem carregava nos ombros? Embora seja gratificante, aquela mulher sabe que não é fácil ter um filho (ou irmão, que seja) com algum tipo de deficiência, que dirá então perdê-lo. Compreendo as situações de preconceito que a mãe poderia estar trazendo, em virtude da pequena diferença da filha. O mundo pode ser um lugar muito cruel. Mas até que ponto temos o direito de, sem mais nem menos, ofendermos, humilharmos e magoarmos os outros apenas porque já fomos feridos no passado? Nunca se sabe a dor que o outro traz consigo. E, na dúvida, é melhor ser doce e não ferir ninguém, do que correr o risco de marcar para sempre alguém já tinha feridas suficientes a curar. Não saberemos o que aconteceria, caso ele tivesse tido a chance de observar a pequena menina por mais algum tempo. Talvez ele superasse um pouco mais a dor da sua perda. Mas não saberemos, pois o momento, que poderia ser mágico, foi tirado dele pela covardia de alguém que escolheu se esconder a se abrir ao mundo real, cheio de sentimentos e até de medos e inseguranças em comum, que há aqui do lado fora. Espero que nós, defeituosa espécie, um dia aprendamos que existe muito mais no mundo do que nós mesmos, e possamos ver o mar de possibilidades que há além dos muros que criamos ao nosso redor. E espero que o homem feito, que atravessou a rua chorando, não se esqueça de que se expor não é um sinal de fraqueza, mas é o maior ato de coragem que nós, como verdadeiros seres humanos, poderíamos assumir.

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"É preciso ter força para esconder os próprios males, mas é preciso coragem para demonstrá-los"

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