Sobre as marcas que ficam
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Por Brena Lacerda
Toda
violência, seja ela física ou não, deixa cicatrizes. Cada vítima carrega as
suas e elas nunca são iguais. Dor não se mede, trauma não se quantifica e
ninguém pode precisar o peso que cada um traz nos ombros. Algumas vezes, a dor
de um acontecimento pode reacender uma mágoa passada, que pensávamos estar
esquecida, superada. Algumas vezes, palavras de consolo, empatia e o tão
atarefado tempo não são suficientes. Nada é. Certas cicatrizes são eternas.
Há
algumas noites, no caminho da faculdade até o ponto de ônibus, pouco depois das
dez, uma amiga e eu conversávamos na rua em que ela mora. Notando que já estava
um pouco tarde, nos despedimos e seguimos caminhos opostos. Eu precisaria andar
menos de três minutos até o ponto de ônibus que estaria cheio de trabalhadores
e estudantes voltando para casa.
Após
o que pareceu cerca de 30 segundos depois da despedida, fui seguida por dois
homens dos quais não vi o rosto, apenas ouvi as risadas. Com o tempo passando
supreendentemente devagar, senti uma forte puxada no braço, da qual consegui me
soltar. Ao tentar correr, um dos sujeitos agarrou minha saia rodada e segurou
meus braços. Meus gritos não eram ouvidos. Eu só pensava no que estava para
acontecer e em como eu preferia morrer ali a ser violentada de tal forma. Usei
toda a força que tinha me debatendo. Consegui soltar um dos braços que se
chocou contra a porta de aço de uma loja. O barulho assustou meu agressor que,
por um segundo, soltou meu outro braço. Foi o tempo que precisei para correr,
atravessar a principal e mais movimentada avenida da cidade e chegar ao ponto
de ônibus, aonde fui amparada por alguns amigos e pude telefonar para minha
mãe.
Em
meio a todo o choque da violência sofrida, do choro que vai e vem e do medo de
todos que não conheço, tenho ouvido tentativas de consolo como ‘não fique
assim, poderia ter sido bem pior’. Mas, na minha concepção, saber que poderia
ter sido pior é o que mais machuca. Se o que aconteceu já me despiu de qualquer
desejo de pôr meus pés para fora de casa pela manhã, como eu me sentiria se
aquela violência tivesse chegado a níveis extremos? Eu não saberia responder.
Não tenho o direito de dizer que entendo ou que imagino a dor de uma pessoa
violada a tal ponto. Sei apenas da minha dor, e ela não tem cabido no peito.
Passei
os últimos oito anos me recuperando do trauma de um assédio sexual sofrido
dentro da minha própria família, no início da minha adolescência. Em minhas
análises posteriores ao ocorrido, sempre me questionei sobre em que momento
permiti que tal coisa acontecesse. Foi culpa minha, que me desenvolvi muito
cedo e sempre chamei atenção? Foi culpa minha, que não notei o interesse,
supostamente, explícito? De alguma forma, a culpa era minha, não do homem 30
anos mais velho do que eu que, abusando da confiança da minha família, pensou
que tinha o direito de me tocar e satisfazer seus desejos, quaisquer que fossem
eles.
A
nova agressão trouxe de volta grande parte da frustração adormecida. Mas, desta
vez, talvez pela idade ou pela experiência, estou certa de que, se não fosse eu
naquela rua, teria sido outra. Se não fosse eu naquele carro, oito anos atrás,
teria sido outra. Não foi o adiantado da hora, não foi a minha saia rodada, não
foi minha meia-calça preta. A única causa da violência foi a prepotência dos
meus agressores, que, ao verem uma jovem sozinha em uma rua vazia, se sentiram
no direito de invadir o meu espaço, me tocar e tentar, a força, conseguir algo
de mim.
É
bastante óbvio, mas a sociedade ainda precisa ouvir: quem causa um estupro é
apenas o estuprador. E é vítima, e não ré, a mulher ou menina que é julgada
como presa fácil e submetida a este tipo de tortura. Talvez, algum dia, a dor
passe, a cicatriz fique mais fraca, quase impossível de se ver, e fique mais
fácil voltar a andar com confiança. Talvez, algum dia, as pessoas entendam que
meu corpo pertence a mim e que é um crime contra a humanidade sequer pensar em
me tocar sem a minha permissão. Talvez um dia, as pessoas saibam e nós não
precisemos mais dizer.
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